
Quando a mentira vira política de Estado
Na era da desinformação institucionalizada, poucos líderes dominaram com tanto vigor o uso da mentira como ferramenta de convencimento quanto Donald Trump. Durante seu mandato e na atual campanha para retornar à Casa Branca, o ex-presidente norte-americano elevou a distorção de dados econômicos a um novo patamar, utilizando números inflados e falsos para justificar políticas de impacto global, como o aumento drástico de tarifas sobre importações — o chamado “tarifaço”.
Sob o pretexto de proteger a indústria americana contra o que chama de “comércio desleal”, Trump não apenas impôs tarifas recordes a parceiros como China, Canadá e União Europeia, mas também construiu sua narrativa sobre alicerces questionáveis, como revelou recentemente uma análise minuciosa da BBC Verify.
A farsa dos “US$ 2 bilhões por dia” em tarifas
Um dos pilares da retórica trumpista sobre comércio é a suposta receita extraordinária gerada por suas tarifas. “Estamos fazendo uma fortuna — US$ 2 bilhões por dia”, afirmou Trump. Mas a verdade, como aponta a BBC, é que esse número não tem respaldo em dados públicos ou projeções realistas.
De acordo com o próprio Departamento do Tesouro dos EUA, a arrecadação diária com tarifas em abril foi de cerca de US$ 215 milhões — quase dez vezes menos que o valor citado. Mesmo cálculos generosos, baseados em importações diárias de US$ 9 bilhões e uma média tarifária de 22%, ignoram o impacto que tarifas elevadas têm sobre o volume de importações. Ou seja, não apenas o número é inflado, como é logicamente insustentável.
O déficit com a China: distorcendo o inimigo econômico
Outra inverdade repetida por Trump é a de que os EUA teriam um déficit comercial de US$ 1 trilhão com a China. Segundo dados oficiais, esse número foi US$ 295 bilhões em 2024 — elevado, sim, mas muito distante da cifra utilizada para dramatizar a relação.
Essa tática de amplificação tem efeitos concretos: alimenta o sentimento nacionalista e cria um clima de urgência e ameaça que justifica ações radicais, como guerras comerciais. Na prática, porém, a retórica mascara o fato de que boa parte do déficit vem do consumo americano por produtos estrangeiros mais baratos — uma escolha do próprio mercado.
Verdades distorcidas: o caso dos laticínios e carros
Trump também utiliza meias-verdades para fundamentar sua visão protecionista. Um exemplo é a denúncia de que o Canadá cobra 270% de tarifa sobre laticínios dos EUA. O número está tecnicamente correto, mas só se aplica quando cotas específicas são ultrapassadas — algo que raramente acontece, segundo a própria indústria americana de laticínios.
A mesma distorção é aplicada ao comércio com a União Europeia. Trump chegou a afirmar que “eles não pegam nossos carros”. No entanto, dados de 2024 mostram que a UE importou 164 mil veículos fabricados nos EUA, num valor de € 7,7 bilhões. Além disso, a UE foi o quarto maior mercado para produtos agrícolas dos EUA — outro dado convenientemente ignorado.
A mentira como instrumento de poder econômico
Esses exemplos não são meras imprecisões. Eles fazem parte de um método de comunicação política deliberado, no qual a simplificação e a mentira são usadas para criar consensos artificiais e justificar medidas de grande impacto, como o isolamento comercial ou o rompimento de acordos multilaterais.
Mais do que proteger a indústria americana, as tarifas de Trump visam consolidar uma narrativa de confronto — um “nós contra eles” no comércio internacional. Ao transformar rivais econômicos em inimigos estratégicos, Trump molda a opinião pública interna e desloca o debate da economia real para a retórica patriótica.
Consequências: custo político e econômico da desinformação
A guerra tarifária com a China resultou em retaliações duras, como tarifas de até 84% sobre produtos americanos. Setores como agricultura, indústria automobilística e tecnologia foram diretamente afetados, com perdas bilionárias e aumento de preços para o consumidor final.
Além disso, a credibilidade internacional dos EUA sofreu abalos. Parceiros comerciais passaram a buscar novos arranjos, e a confiança em dados fornecidos pelo governo americano foi minada.
Quando os números mentem por encomenda
O caso Trump é exemplar sobre como a mentira pode ser instrumentalizada como política pública. Ao manipular números e omitir contextos, o ex-presidente construiu uma narrativa de vitimização econômica que justifica o isolacionismo, rompe consensos históricos e ameaça o equilíbrio global.
A lição, para o jornalismo e para os cidadãos, é clara: verificar nunca foi tão urgente. Em tempos de guerra comercial e polarização, a verdade — mesmo em seus detalhes mais técnicos — torna-se um dos primeiros alvos.