Estudo do Unicef, o Fundo das Nações Unidas para a Infância, mostra que 61% das crianças e adolescentes do Brasil são afetados pela pobreza, em suas múltiplas dimensões. São 32 milhões de brasileiros nessas condições aponta o estudo “Pobreza na Infância e na Adolescência”, que teve como base a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) 2015.
O estudo mostra que a pobreza na infância e na adolescência vai além da renda. Além de a pobreza monetária, é preciso observar o conjunto de privações de direitos a que meninas e meninos são submetidos.
“Incluir a privação de direitos como uma das faces da pobreza não é comum nas análises tradicionais sobre o tema, mas é essencial para dar destaque ao conjunto dos problemas graves que afetam as possibilidades de meninas e meninos desenvolverem o seu potencial e garantir o seu bem-estar”, explica Florence Bauer, representante do UNICEF no Brasil.
Nesse estudo, foram analisados a renda familiar de crianças e adolescentes e o acesso deles a seis direitos: educação, informação, proteção contra o trabalho infantil, moradia, água e saneamento. A ausência de um ou mais desses seis direitos coloca meninas e meninos em situação de “privação”. Os direitos de crianças e adolescentes são indivisíveis e têm que ser garantidos em conjunto.
Os resultados mostram que, no Brasil, 32 milhões de meninas e meninos (61%) vivem na pobreza, em suas múltiplas dimensões. Desses, 6 milhões são afetados somente pela pobreza monetária. Ou seja, vivem em famílias monetariamente pobres, mas têm os seis direitos analisados pelo estudo garantidos. Outros 12 milhões, além de viver na pobreza monetária, têm um ou mais direitos negados, estando em uma situação de privação múltipla. E há ainda 14 milhões de meninas e meninos que, embora não sejam monetariamente pobres, têm um ou mais direitos negados. Somando esses dois últimos grupos, o País conta com quase 27 milhões de crianças e adolescentes (49,7% do total) com um ou mais direitos negados, em situação de “privação”.
No conjunto de aspectos analisados, o saneamento é a privação que afeta o maior número de crianças e adolescentes (13,3 milhões), seguido por educação (8,8 milhões), água (7,6 milhões), informação (6,8 milhões), moradia (5,9 milhões) e trabalho infantil (2,5 milhões).
As privações de direito também afetam de forma diferente cada grupo de meninas e meninos brasileiros. Os adolescentes têm mais direitos negados (58% para o grupo de 11 a 13 anos, e 59,9% para os de 14 a 17 anos) que as crianças mais jovens (39,7% para o grupo de até 5 anos e 45,5% para as crianças de 6 a 10 anos). Moradores da zona rural são mais afetados de privações do que aqueles da zona urbana. Crianças e adolescentes negros sofrem mais violações do que meninas e meninos brancos, reflexo da discriminação racial e exclusão que muitas crianças e muitos adolescentes sofrem no Brasil. Moradores das regiões Norte e Nordeste enfrentam mais privações do que os do Sul e Sudeste.
E, conforme crescem, crianças e adolescentes vão experimentando um número maior de privações. Muitas meninas e muitos meninos estão expostos a mais de uma privação simultaneamente. Em média, elas e eles tiveram 1,7 privação. Há 14,7 milhões de meninas e meninos com apenas uma, 7,3 milhões com duas e 4,5 milhões com três ou mais privações. Neste último grupo, existem 13,9 mil crianças e adolescentes que não têm acesso a nenhum dos seis direitos analisados pelo estudo, estão completamente à margem de políticas públicas.
Compreender cada uma dessas dimensões é essencial para desenhar políticas públicas capazes de reverter a pobreza na infância e na adolescência. O UNICEF convida gestores públicos da União, dos Estados e municípios a utilizarem esse estudo como uma ferramenta para pensar respostas precisas e oportunas para crianças e adolescentes no Brasil. E espera que ele sirva de inspiração para que outras análises sejam realizadas no País. Entre os próximos passos, o UNICEF sugere:
Crianças e adolescentes como prioridade – Incluir as crianças e os adolescentes como prioridade absoluta no Plano Plurianual (PPA) 2020-2023, contribuindo para o alinhamento das metas do País com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), entendida como uma boa oportunidade para avançar no alcance dos ODS relacionados à infância e à adolescência até o ano de 2030.
Institucionalizar o monitoramento das privações – Incluir as privações múltiplas sofridas por crianças e adolescentes nas medições oficiais realizadas pelos órgãos estatais oficiais, de modo a ter um monitoramento periódico da pobreza na infância e na adolescência no País.
Usar esse estudo para políticas e orçamentos – Utilizar a análise das privações múltiplas na infância e na adolescência para monitorar a situação de meninas e meninos brasileiros. Com base nos dados, elaborar planos de desenvolvimento capazes de garantir que políticas e programas sejam apropriados para os diferentes públicos-alvo, de acordo com as necessidades de cada grupo de meninas e meninos, nas diferentes áreas e regiões do País. Com base nas informações, planejar melhor as necessidades financeiras dos programas e políticas voltados a crianças e adolescentes, de modo que os recursos públicos sejam alocados de maneira apropriada nos orçamentos federal, estadual e municipal.
Negros
Os números revelam também que os negros têm menos acessos a direitos: entre os meninos e meninas negros, a taxa de privação é de 58,3%, enquanto entre os brancos o índice é de 38%. A relação é a mesma para o percentual de privação extrema: 23,6% contra 12,8%.
Os problemas também são mais intensos no campo. O índice de privação dos que moram na zona rual é o dobro do daqueles que vivem nas cidades: 87,5%, contra 41,6%.
As regiões Norte e Nordeste concentram os maiores índices de privação direitos em quase todas as dimensões analisadas pelo estudo. A exceção fica com o item moradia, no qual o Sudeste supera o Nordeste, ficando atrás apenas do Norte.
“É preciso trabalhar mais e com maior precisão no desenho de políticas públicas e programas para crianças e adolescentes negros, com alocação suficiente de recursos orçamentários para que tenham acesso a todos os serviços, especialmente nas Regiões Norte e Nordeste, prestando atenção especial aos serviços de água e saneamento”, destaca a Unicef no relatório.
Direitos
O direito ao saneamento é o mais negado às crianças e adolescentes brasileiros, mostra o estudo. São 13,3 milhões privados do acesso a uma rede de esgoto de forma intermediária e extrema. Em seguida, vem a edução, com 8,7 milhões.
Em relação ao saneamento, 3,1% das crianças e adolescentes brasileiros sequer têm vaso sanitário em casa. Outros 21,9% têm apenas fossas rudimentares. Entre aquelas privadas de alguma forma desse direito, 70% são negras. A situação é mais grave nas regiões Norte e Nordeste, onde 44,6% e 39,4%, respectivamente, enfrentam o problema.
Os negros também são mais penalizados quanto ao acesso à educação, segundo o estudo. Há 545 meninas e meninos negros analfabetos no país, enquanto os brancos são menos da metade: 207 mil. Dos brasileiros menores de 17 anos, 20,3% têm o direito à educação violado de alguma forma (estão atrasados ou são analfabetos), sendo que 6,5% estão fora da escola.
No quesito informação, 25,7% das crianças e adolescente não tiveram acesso à internet nos três meses anteriores à coleta da Pnad. Desses, 73% são negros.
Já quanto à privação de água, 6,8% dos menores brasileiros não contam com sistema de água em casa, enquanto 7,5% não têm água filtrada ou procedente de fonte segura. O problema é mais grave na região norte e na zona rural.
A privação de moradia afeta 11% das crianças e adolescentes brasileiros, sendo que 6,8% vivem em casas com teto de madeira e com quatro pessoas por quarto e 4,2% moram em barracos com teto de palha e cinco pessoas por quarto.
O trabalho infantil doméstico ou remunerado atinge 6,2% dos menores brasileiros. O trabalho é ilegal para menores de 13 anos, 3% das crianças de 5 a 9 anos e 7,4% daquelas que têm entre 10 e 13 anos trabalham no país. Entre os maiores de 14 anos, 8,4% (quase 1,2 milhão) trabalham mais do que as 20 horas semanais permitidas pela lei.
Entenda a classificação da privação de direitos do Unicef:
Educação
Privação intermediária: criança de 7 a 17 anos que frequenta a escola, mas com atraso, ou maior de 7 anos analfabeta que frequenta escola.
Privação extrema: criança de 4 a 17 anos que não frequenta escola ou criança ou maior de 7 anos analfabeta que não frequenta escola.
Informação
Privação intermediária: criança de 10 a 17 anos que não teve acesso à internet nos últimos 3 meses, mas tem TV em casa.
Privação extrema: criança de 10 a 17 anos que não acessou a internet nos últimos 3 meses e não tem TV.
Moradia
Privação intermediária: menor de 18 anos que vive em casa com 4 pessoas por dormitório ou cujas paredes e te%to são de madeira aproveitada.
Privação extrema: menor de 18 anos que com mais de 4 pessoas por dormitório ou cujas paredes e teto são de palha.
Água
Privação intermediária: menor de 18 anos que vivem em casa com água, que vem de poço sem filtro ou fonte desconhecida.
Privação extrema: menor de 18 anos que vive em casa sem água.
Saneamento
Privação intermediária: menor de 18 anos que vive em casa com banheiro compartilhado ou fossa rudimentar.
Privação extrema: menor de 18 anos que vive em casa sem banheiro ou com vala a céu aberto.
Trabalho infantil
Privação intermediária: criança de 5 a 9 anos que fez de 10 a 20 horas de tarefas domésticas na semana; criança de 10 a 13 anos que fez entre 15 e 20 horas; e criança de 14 a 17 anos que fez entre 21 e 30 horas na semana.
Privação extrema: criança de 5 a 9 anos que trabalhou ou fez mais de 20 horas de tarefas domésticas na semana; criança de 10 a 13 anos que trabalhou por mais de 14 horas ou fez mais de 20 horas de tarefas domésticas na semana; criança de 14 a 17 anos que trabalhou por mais de 30 horas ou realizou mais de 30 horas de tarefas na semana.